sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

T#50 – O “HERÓI” ARANHA

Antes de compartilhar sobre um dos personagens mais aclamados da cultura pop, e a sua incrível narrativa, preciso ambientar o nosso momento histórico. 

A ficção, de modo único, se entrelaça à realidade, fazendo com que nossa existência seja impactada por sucessivas cenas, frente a variadas “telas”. A sétima arte é uma das ferramentas mais poderosas. Sabendo-se disso, ela já foi utilizada para propagandas e panfletagens, mostrando que não serve apenas para entretenimento, pois faz com que visões de mundo sejam manifestas por meio dela. O ato de ir ao cinema é um movimento litúrgico, que torna a experiência cinematográfica uma espécie de “culto”.

Um dos principais propósitos do teatro, segundo Aristóteles, é realizar “catarse”; onde o mesmo é a junção de diversas artes: literatura, pintura, dança e música. Se isso é verdade, o cinema, pelo seu poder, uni, e também potencializa toda essa dimensão artística.

Não à toa, em pleno período de pandemia, COVID 19, e as incertezas causadas pela nova variante, ÔMICRON, o público, de absolutamente todas as idades marcaram presença, indo assistir, ou melhor, renovar as suas esperanças de um mundo melhor.

O filme a alcançar os US$ 1 bilhão mais rápido foi “Vingadores: Ultimato”, com apenas 5 dias. Mas, depois dele as coisas ficam mais próximas do que tivemos em “Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa”, que alcançou o valor em 12 dias de exibição


Sim, em meio a calamidade que vivemos, tempos difíceis devido às instabilidades que o vírus vem causando, por mais de um ano e meio, as pessoas começaram a sentir a necessidade de um herói, e desta vez um velho conhecido, o amigo da vizinhança. Percebe-se que por pelo menos três horas, esquecemos do imanente, e saltamos para o transcendente. Quando entramos numa sala escura, com diversas pessoas e muita expectativa, também nos abrimos para uma nova história, como CS Lewis sintetizou: Mas, ao ler a grande literatura, eu me torno mil homens e, mesmo assim, continuo a ser eu mesmo. 

Defendo que assistir é um modo de leitura, ainda mais em tempos de grandes produções, como séries, filmes e jogos de videogame disponíveis no mainstreaming. Em hipótese nenhuma “assistir” substitui a “leitura das palavras”, mas é notório que tal ação possui uma dimensão hermética importantíssima na atualidade. 

A partir disso, apresento em três movimentos, as tensões e resoluções do araquinidio, ao longo do seu ‘espetacular’ histórico.


  1. O herói desvelado

A pouco tempo li o quadrinho, da primeira aparição de Peter Parker. Particularmente, gostei muito. É possível perceber, na origem do órfão, um herói diferenciado. A máxima de Tio Ben, transita os bons tempos das HQ 's. Aqui, estamos nos tempos áureos, onde o nosso inusitado personagem ganha corpo, história e enredo. 

Stan Lee contrária a muitos, criando uma história peculiar, onde o herói é baseado numa aranha; quem gosta de aranhas? Ele é um adolescente; quem gosta das crises e problemas de um? E mais, ele não é um galã; quem gosta de nerds mimados? Com toda genialidade no texto, e as animações de Steve Ditko, aprendemos a gostar demais dele.

Nos desenhos animados da década de 1990, o Homem-Aranha já não é representado como nas suas histórias originais. A animação não contém personagens importantes, e evita grandes desastres, como a morte de Gwen Stacy, por exemplo.   

Vemos isso também nos filmes, como na primeira grande trilogia de Sam Reimi, que apresenta um trabalho muito interessante, envolvendo os grandes vilões do herói, mas não fechando o arco de modo harmônico, com o devido desfecho ao nosso ver. O filme Espetacular Homem-Aranha (2012 e 2014), recuperou esta famosa tragédia, que junto a morte do Tio Ben estrutura o caráter, valores e cosmovisão do aranha.

Peter Parker recusa apresentações. O herói do Queens e Manhattan, nesse filme atual, "Sem volta para casa” (2021) possui sua melhor apresentação em relação aos outros, “de volta ao lar” (2017) e “longe de casa” (2019). Problemas sérios com a sua exposição identitária é o cerne dos desdobramentos sequenciais nesta trama. É bom lembrar que o Homem-Aranha (Tom Holland) já se mostrou super descuidado na proteção de sua identidade, onde no primeiro filme seu melhor amigo, Ned Leeds, descobre, e no segundo, sua namorada, Michelle Jones também. O “jovem” aranha ainda não possui maturidade aparentemente. As suas motivações são boas, mas isso não é suficiente para o herói ‘vingador’. Mais impactante que uma guerra civil e um ultimato seria uma mudança radical, e abertura para as improbabilidades do multiverso. 

Sobre o multiverso e a sua instabilidade, já tínhamos uma ideia prévia. A animação vencedora do Oscar: “Homem-Aranha no Aranhaverso" (2018), nos apresentou do Porco-Aranha a Miles Morales, uma narrativa incrível, da qual teremos continuidade. Mas, o importante aqui é dizer, que o precedente que o Doutor Estranho possibilita, após “o feitiço errado”, cujo Peter solicita, não é uma novidade também. No próprio filme, dele, em 2016, já tivemos um antegosto, que seguirá no “Multiverso da Loucura” (2022), com muita magia em efeitos especiais, que por incrível que pareça é vencida pelos conhecimentos matemáticos-geométricos de Peter, numa das lutas do atual filme.  

Seria o filme a mostrar uma camada: “Mitos Vs. Logos”, ou estou exagerando? Penso que não. Peter quer ir para o MIT, fazendo com que o conhecimento científico, se torne sua arma também, contra qualquer ‘pseudo mitológico’, mesmo quando estamos no multiverso Marvel. Desvelado, os vilões a serem enfrentados são de outras histórias paralelas, que possuem um ponto em comum, todos são cientistas, e não é por acaso!  

Duende Verde (Willem Dafoe), Doutor Octopus (Alfred Molina), Lagarto (Rhys Ifans) e Electro (Jamie Foxx) compartilham de uma inteligência incomum, mas que por algum motivo, em suas tramas próprias, são afetadas por algum objetivo próprio, individual, que deturpa o bem coletivo e o amor ao próximo. Talvez o único que se desqualifique nessa categoria de vilões intelectuais seja o Homem-Areia (Thomas Haden Church). 


  1. Perder e Salvar


“Não são maldições, são dons”. (Duende Verde – Filme Atual)

Preciso resgatar o herói que ganhou nossa atenção desde as HQ 's. Sua bondade e moralidade desde muito jovem, é o pilar da característica do personagem. Quando assisti a trilogia do Homem-Aranha (Tobey Maguire) em minha infância, gostei tanto, que meus cadernos, brinquedos e roupas estampavam o mesmo. 

A novela com Mary Jane e com Harry Osborn na grande Nova York, forjou bastante do meu imaginário sobre a vida universitária, até o início do meu ensino médio. Mas, aqui temos um herói com muitas marcas. Ele já tinha perdido seu tio Ben, assim como em “O Espetacular Homem-Aranha” (2012 e 2014), posteriormente. Ambos os casos com grande remorso, já que discussões e vaidade precederam tal momento. A vingança tomou conta do primeiro, já a profunda angústia toma conta do segundo Homem-Aranha (Andrew Garfield), que ainda carrega uma das mais trágicas perdas das HQ 's.

O Peter deste universo precisa aprender, assim como Luke em Star Wars, e estes outros aranhas, a jornada do herói. Esta que consiste de medo, dor e sofrimento; algo que ninguém deseja, mas que todos necessitamos, para se ter coragem, felicidade e deleite. Para o épico ajuntamento dos “três aranhas”, a marcante frase: "Com grandes poderes vem grandes responsabilidades". É o padecimento da Tia May. Seria o conceito de curar, em vez de quebrar, todos eles. Somente assim, os talentos se tornam em dádiva.


  1. A segunda chance


Eu tentei, sabe? Mas aquilo não é cinema. Honestamente, o máximo que consigo considerá-los é, apesar de serem bem feitos, com atores fazendo o melhor que pode, são como parques temáticos. Não é cinema, com humanos tentando conceber emoções e experiências psicológicas para outros seres humanos. (Comentário de Martin Scorsese à revista Empire)

Temos uma virada; a possibilidade para uma renovação e esperança, é matar ou curar. Peter, após a aparição dos múltiplos vilões, acredita em uma mudança nos vilões. Quando os outros aranhas aparecem ele continua com a mesma convicção. Logo, penso, as pessoas são más por natureza, ou as circunstâncias as tornam más? Teremos que decidir, na estátua da liberdade, para a batalha final, literalmente.

A segunda chance, em meio a unidade, trazendo o antídoto, é a amostra que os mais de cinco milhões de telespectadores precisam enfatizar. Um final que o herói se compadece de seus desejos, de suas vontades, e volta a ser um esquecido pela sociedade, continuando no anonimato a sua missão. 

Martin Scorsese, um dos grandes diretores da história do cinema, em uma entrevista criticou profundamente os filmes da Marvel, em geral. Concordo em muito com diversas de suas apreciações, mas é bom lembrarmos o serviço de um filme de herói. 

O que estas narrativas querem nos ensinar? Quase todos, ao assistirem um filme como esse, conhecem os desdobramentos, falas e cenas; então, o que há de mais importante? Sem dúvidas não são os meios; os efeitos especiais alucinantes, talvez para uma criança, mas para um jovem-adulto, a construção para se chegar ao final é a chave. Quando acaba um filme, ou qualquer sessão que envolve “Arte”, devemos nos perguntar: “Interessante. Mas, e daí?” O que essas horas gastas irão impactar na vida ordinária?

Em 2022, teremos mais de dez filmes de heróis; parece ser uma forte tendência, onde as gigantes produtoras investem pesado. Para alcançar todos os públicos, a DC Comics, com mais um filme de Batman e Aquaman, e a Marvel, com suas continuações e conexões, prometem não apenas grandes bilheterias, mas sugerir “mundos alternativos”.

O atual filme do diretor Jon Watts conseguiu transitar em diversos gêneros. Em uma mesma obra o público sentiu o teor cômico, no estalar das costas; a aventura, tradição de um filme de super herói; o romantismo adolescente e o drama que o sacrifício causa. Toda a experiência, até as cenas pós créditos está no ápice. Após a criação incrível dessa história, e a queda, em toda a trama ocorrida, vimos a Redenção! Mas, aonde? Simplesmente, na salvação do outro, mesmo se eu perdi. Isso é cinema Scorsese!

A morte marca tanto esta história, que deixa o personagem humanizado. Assim, como nos, pedidos por continuidade e possibilidades de um mundo diferente logo se faz. Miles Morales, do Brooklyn, é essa continuidade no universo ultimate, onde Peter morre; já a grande possibilidade vem do universo onde temos viva a Gwen-Aranha.   

O valor de tudo isso, vi nas lágrimas que ocorreram na sala de cinema. As pessoas carecem de um herói, nem que seja por minutos. Por poucas horas, a vida tangenciou a arte, e a arte tangenciou a vida. Neste entrelaço à pergunta, como, então, viveremos?


IV.     Referências  

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina. Ed. Nova Vida, 2016, p.32

 https://abra.com.br/artigos/quais-sao-as-7-artes/ (acesso em 26/12/2021)

https://olhardigital.com.br/2021/12/26/cinema-e-streaming/homem-aranha-sem-volta-para-casa-ultrapassa-us-1-bilhao-em-bilheteria/ (acesso em 26/12/2021)

LEWIS, CS. Como cultivar uma vida de leitura.  Ed. Thomas Nelson, 2020, p.20          

https://www.mit.edu/about/ (acesso em 26/12/2021)

Nenhum comentário:

Postar um comentário