domingo, 2 de maio de 2021

T05 21 – Trabalho é apenas salário?

Procurar responder de modo sincero o que é trabalho, nos dias atuais, não é tarefa fácil. Existem várias visões ao tratar o assunto, e compreendo a importância dessa diversidade. Porém, entendo, que mesmo que cada pessoa possa responder de modo individual tal questão, existe um terreno comum a todos nós, que consiste como essencial. 

Para fundamentar esse terreno, e melhor entender o que é o trabalho, iremos trilhar nosso argumento em quatro movimentos. São eles: disposição, capacitação, integração e serviço. Acreditamos que cada ato possui um valor intrínseco em si, nos ajudando a verificar que o trabalho é muito mais que salário.


  1.  Disposição

Partindo de nossos anseios, trabalhemos o que venha a ser disposição. Começando no seu âmago, trazendo alguns problemas fundamentais a serem respondidos por cada um de nós. 

  1. Qual é a realidade primordial - o realmente real?

  2. Qual é a natureza da realidade externa, isto é, do mundo à nossa volta?

  3. Que é o ser humano?

  4. O que acontece às pessoas quando morrem?

  5. Por que é possível conhecer de fato alguma coisa? 

  6. Como sabemos o que é certo e o que é errado?

  7. Qual o significado da história humana?

(As questões acima são retiradas do livro “Dando nome ao Elefante” de James W. Sire) 

Iniciamos com tais questões, por elas provocarem uma cosmovisão aos que procuram ser sinceros a elas. São perguntas tão profundas, que mesmo que você se esquive delas, uma hora ou outra, as mesmas retornarão. Isso, por serem voltadas ao como enxergamos e vivemos a vida. Por serem tão basilares para nossa compreensão da realidade, precisamos de uma disposição para respondê-las. 

Mas, além de procurar responder a cada item, é necessário encadear essas respostas. Como não é tarefa fácil, a disposição se faz tarefa primeira nessa busca por entender o que é o trabalho, procurando fugir de qualquer reducionismo, ou mesmo, falta de sentido.

A visão bíblico-cristã, ao nosso ver, promove as melhores respostas e o melhor encadeamento entre as mesmas; levando em consideração a razão, mas nunca ignorando a fé. Nela, observamos uma narrativa que provoca uma disposição inicial, uma busca em nosso interior, para construir uma visão de mundo, longe de qualquer comodidade. 

Em resumo a esta visão, Deus instituiu o trabalho antes da queda (Gn. 1.28-30; 2.19-20). Adão já tinha várias funções no Éden, como administrar a terra, dar nome aos animais e coletar frutos. Eva, o auxiliava neste trabalho (Gn. 2.23-24). O paraíso não é fazer nada, essa ideia não é bíblica, já que sempre foi da vontade de Deus o trabalho dos homens.

O problema é o que aconteceu depois do pecado original, pois, com a produção pelo "suor do rosto", agora, ficamos mais exaustos e fadigados, já que nossa visão sobre Deus se distorceu. Invés de glorificarmos a Ele com tudo que somos e fazemos, agora, muita das vezes, achamos que Deus e o trabalho são antagônicos (Gn. 3.16-19).

Deve-se ter disposição para entender e responder pessoalmente essas grandes perguntas acima. Mesmo que elas não se conectem diretamente com o que é trabalho em si, já possibilitam um norte para os nossos esforços futuros. Os quais, precisamos investigar se “trabalhar por trabalhar” é legítimo, ou se “não trabalhar” é o melhor para todos nós. Estamos disponíveis para pensar, e depois para agir? A abertura para a disponibilidade é o passo inicial à jornada. 


  1. Capacitação

O termo que leva o título, capacitação, pode ser também chamado de formação em nossa análise. Se a disposição para pensar, responder e agir é o começo, a continuidade vem pela competência adquirida, em vias formais e informais. Assim, conceitos como excelência e perfeição serão vocábulo ao jogo de linguagem do trabalhador. 

A vontade começa na disposição, mas é provada na formação. Como exemplo, penso no cavaleiro na idade média. Ele precisava ser durante anos um escudeiro. Em outras palavras, aprendiz, para um dia poder servir o reino. A capacitação é condição necessária para o trabalho, e pasmem, para qualquer um deles; não apenas o intelectual. 

Não basta ser honesto. Precisamos trabalhar. (Augustus Nicodemus)

O homem grego, em síntese, pensava em uma formação para dois fins: o fazer bélico, militar; e o fazer “retórico”, político. Claro, que se pensarmos nas sete artes liberais e na Paideia, poderíamos expandir bem mais os nossos horizontes, e explorar uma capacitação não voltada ao espírito "prático''. Porém, aqui trabalharemos na linha mais espartana, do que na ateniense. No sentido "secular" do período medieval.

Durante os séculos as capacitações foram mudando, mas desde o Tribalismo, por mais "simples" que fossem, elas existiram. Quando vemos alguém buscando trabalho, sem buscar capacitação, com certeza temos alguém que não entendeu o que irá desempenhar a sua vida. Nesse sentido, penso, atualmente, que empreender sem saber é loucura. Invés da ação ter uma potencial fonte de renda, para o lucro e riqueza; ela pode ser uma fonte de déficit, eternos débitos e constante pobreza.

Pense em outra situação, recorrente a essa. Você pode negociar suas “habilidades” com um rico, tornando- o ainda mais rico (mas, enriquecendo sua experiência). Ou pode ignorar as hierarquias e começar a liderar o seu pequeno negócio do nada. (Não o entendendo, já que sem conhecimentos gerais e específicos o pragmatismo salta, pela vontade, e não pela competência). Logo, o empreendimento continuará no máximo pequeno, se continuar. Essa vontade, em fazer e exercer nossas potências capacidades, atropela o tempo, as etapas, os compassos e o ritmo. 

De fato, o Brasil está na contramão do mundo investindo menos de 1% do PIB em pesquisa e desenvolvimento – enquanto União Europeia investe 3%, Estados Unidos 2,7%, China 2,5%, Coreia do Sul e Israel mais que 4%. (Davi Lago)

Notícias como essas preocupam a todos, já que políticas internas não se tornam grandes exemplos para as pessoas. Elas poderiam fazer com que o povo sinta necessidade de investir em si mesmas. É uma situação complicada, pois, em uma nação onde grande parte das pessoas precisam escolher entre estudar/ pesquisar ou trabalhar/ aplicar, por opção ou não; a ideia conceitual de vocação; que nascemos, vivemos e eternizamos por “um propósito”, se perde na irrelevância da falta de significado e os acasos. Logo, as pessoas se apegam a um aspecto ou outro desse aparente conflito; se fazendo necessário uma integração entre ambos.  


  1. Integração

Percebemos a necessidade do diálogo entre estudo e trabalho, e que tal fato se distancia da tendência humana à preguiça. Assim, também esclarecemos que essa tendência à preguiça difere da ideia de descanso, pois ela é uma evidência de pessoas que buscam a satisfação imediata; que consomem muito, e produzem pouco. 

Com tais ideias em mente, observamos que o trabalho, desde os primórdios, é uma tarefa responsável, que demanda esforço. Ele dignifica o ser humano, estabelece valores e acelera o progresso de uma nação. Por isso, devemos ter clareza sobre a tarefa que designamos, conhecendo-a a ponto de justificar e aplicar sempre que possível. 

Se o financiamento de programas sociais se torna a única solução para a pobreza, ele simplesmente tem de ser repetido constantemente, e os beneficiários continuam pobres. A única solução em longo prazo para a pobreza vem quando as pessoas têm habilidades suficientes e disciplina para obter e manter empregos economicamente produtivos. (Wayne Grudem) 

É preciso uma consciência, a de que trabalho é uma dádiva, e que o salário pode ser gerado por este meio. Não há outro caminho, ético e moral, para desconstruir o fato. Quando uma nação começa a viver de “favores”, "empréstimos" e “assistencialismo” por muito tempo, problemas estruturais começam a acontecer. A Bíblia Sagrada é clara: 

E ficai na mesma casa, comendo e bebendo do que eles tiverem, pois digno é o obreiro de seu salário. Não andeis de casa em casa. (Lucas 10.7)

Somos todos responsáveis pela nossa própria situação financeira (por mais difícil que isso possa ser de ouvir) e não podendo terceirizar este bem-estar ao governo e a sociedade. Até mesmo quando nos voluntariamos em alguma causa ou projeto, devemos ter consciência dessa prática, para que uma visão deturpada não nos arrebate; como acontecem aos mercenários. Entre voluntário e mercenário, tenhamos grande cuidado, ao entender o que é salário.  

Vemos que trabalho gera salário, e que qualquer outra fórmula, simplificada, que chega a salário sem esforço, está possivelmente perto de algum roubo. Isso não quer dizer que o trabalho não possa ser algo que nos satisfaça, que nos deixem felizes; é possível sim conciliar produção e prazer. Mas, é bom deixar claro, que por mais que trabalho é o melhor caminho para se ter salário, ele não é apenas salário. O materialismo faz com que pensemos nessa correspondência direta. Lembremos dessas palavras do Apóstolo Paulo:

Nem de graça comemos o pão de homem algum, mas com trabalho e fadiga, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós.

(2 Tessalonicenses 3.8)

O apóstolo, de nenhuma maneira tem uma visão materialista sobre o trabalho, sua vida prova disso; entretanto, ele orienta aos homens, dos mais simples aos ordenados, que trabalhem. Sua visão é objetiva: Alguns não podem se tornar peso na vida dos outros, mas, os tais, devem servir uns aos outros com o que possuem. Aqui está uma grande diferença de algumas ideologias políticas atuais, que procuram adaptar o texto bíblico ao seu próprio interesse, já que para servir uns aos outros, o pressuposto é que se tenha alguns tipos de riqueza própria, mas não voltada para seus próprios interesses, e sim para a glória de Deus. 


  1. Serviço

Os consumidores preguiçosos, negligentes e egoístas, que produzem cada vez menos valor para a sociedade, e os viciados em trabalho, que produzem cada vez mais e ganham imensa riqueza, mas deixam um rastro de famílias destruídas e filhos perdidos? Os pobres puxarão a economia para baixo, e os ricos, para cima, e haverá cada vez mais conflito entre os dois grupos, enquanto a sociedade se desintegra. (Barry Asmus e Wayne Grudem)

Em meio a realidade descrita acima, e a discrepância entre os mais afortunados e os mais vulneráveis de nossas cidades, a grande questão que nos une, depois da disposição, capacitação e integração é: E se meu trabalho for serviço? 

Se mesmo em meio aos diversos problemas econômicos trabalhássemos a serviço dos pobres, estrangeiros, viúvas, órfãos e desorientados, estaríamos em um melhor caminho.

Nessa proposta, ignoro o trabalho como fonte de renda e benefício próprio apenas. Muito menos a exploração dos desprovidos de discernimento. Também evito colocar tal visão na caixinha do departamento de políticas públicas de um governo. Não é ser audacioso, mas nossa visão é sobre um trabalho proposital, e significativo, que provoca uma mentalidade envolta do conceito de mordomia, que é a administração dos bens que nos foi adquirido em relação às pessoas que nos cercam. 

Nessa visão, o trabalho é colaborativo. Por exemplo: Se eu negocio meus serviços com um rico, ele se tornaria, provavelmente, ainda mais rico. Mas, também enriqueceria a minha experiência; e isso é melhor que ignorar as hierarquias, e começar a liderar o meu pequeno negócio do nada, não entendendo, por soberba, que sem conhecimentos gerais e específicos um negócio não continuará, nem mesmo pequeno. O ego não pode ser inflado por nenhum lado, pois o que importa é o serviço, em benefício ao semelhante. 

Contudo, é importante saber que enriquecer e possuir propriedades e bens não é pecado. O pecado está em viver para isso, esquecendo-se de Deus e das pessoas. Por isso é importante refletir nisto: o melhor remédio contra a ganância é dar, é contribuir generosa e regularmente para aliviar o sofrimento de outros e para manter e fazer avançar o reino de Deus neste mundo (1 Tm 6.17-19). [Augustus Nicodemus]

Nosso problema nunca foi o dinheiro em si, ou mesmo o salário; mas o como muitas vezes atribuímos valores ao que não é tão valoroso; e o quanto ignoramos o poder do trabalho.

O trabalho direcionado restaura uma nação, seja de forma direta, com serviços prestados em áreas específicas, como saúde e educação (desenvolvimento); ou de forma indireta, por meio de ofertas e doações para órgãos de atendimento a pessoas carentes (socorro). Quando de modo orquestrado essas coisas começam a acontecer esporadicamente, e não para alguém aparecer, mas sim uma sociedade se mover; as coisas começam a mudar, e com novas lentes começamos a enxergar. 

Paramos de olhar para o trabalho e o salário como algo para nós mesmos, e o giro no próprio umbigo. Invés disso, olhamos o mundo com olhar de serviço, bem parecido com Jesus Cristo.

Duas coisas te pedi; não mas negues, antes que morra: Afasta de mim a vaidade e a palavra mentirosa; não me dês nem a pobreza nem a riqueza; mantém-me do pão da minha porção de costume; Para que, porventura, estando farto não te negue, e venha a dizer: Quem é o Senhor? ou que, empobrecendo, não venha a furtar, e tome o nome de Deus em vão. 

(Provérbios 30.7-9)


  1. Referências

1. ASMUS, Barry e GRUDEM, Wayne. Cosmovisão cristã sobre política e economia. Ed. Nova Vida. 2016

2. NICODEMUS, Augustus. O que a bíblia fala sobre dinheiro. Ed. Mundo Cristão. 2021

3. SIRE, James W. Dando nome ao elefante. Ed. Monergismo. 2012 

4. https://veja.abril.com.br/blog/matheus-leitao/o-ocaso-tecnologico-brasileiro/

5. https://www.bibliaonline.com.br/acf